9.11.04

Toda A Mente É Danada (2)

Tinha resolvido tudo. O automóvel fora rebocado, ele arranjara outro transporte e podia começar com a sua vigília. Só não compreendia o que lhe tinha acontecido depois do despiste. Consequências do desastre? Não sabia porquê, mas a explicação não o satisfazia completamente. E aquele gosto a comida chinesa que teimava em persistir-lhe na boca? Ele detestava comida chinesa.
Estacionou o carro em frente de uma mansão que parecia antiga: uma réplica de um estilo inglês qualquer, não se recordava do nome. Ali, do lado oposto da rua, via bem a casa seguinte, de linhas modernistas, início do século XX provavelmente. Era lá que ele vivia.
Sentou-se melhor no banco e esperou pelos acontecimentos.

- Phoebe, acho que vou trabalhar...
- Para variar.
- Sim, porque passar a vida sem fazer nada acaba por se transformar num tédio inultrapassável.
Fui vestir-me. Não sabia o que vestir hoje, estava numa indecisão atroz.
- Porque não levas o teu uniforme de executivo de 1987, querido? – Phoebe salvava-me sempre.
Será que o vizinho comprou um carro novo, ou aquele automóvel cinzento estaria estacionado perto da sua casa apenas por acaso? Não devia ser dele, era demasiado vulgar para os seus gostos.
Liguei o rádio num posto que mimetizava as antigas estações americanas de FM e tomei um composto estimulante, um vulgar agitador. Podia tomá-lo com confiança, era um dos produtos que a minha empresa elaborava. Se melhorássemos o gosto, talvez...

A sensação de movimento revelou-se verdadeira quando ele abriu os olhos e acordou completamente. Teria sido a música do rádio que o acordara? E a sua cama quente, para onde fora? Acontecera novamente, aquele sonho (seria?) tão real! Não era o seu carro, aquele era de uma época anterior à daquele que possuía. Conseguiu ver-se quando olhou para o retrovisor interior. Aquele não era ele!

O volante alterou as suas dimensões num súbito ímpeto, como se se libertasse das leis da física que o aprisionavam na sua para sempre imutável forma.
Reconheceu quase imediatamente o automóvel que seguia à sua frente: era o seu! Que raio de coisa lhe estaria a acontecer? Estava louco de vez, ou teria sido o agitador que lhe provocara uma alucinação? Quando parou atrás do seu carro num sinal vermelho ouviu distintamente a música de uma certa estação FM. Para alucinação era bem sofisticada... O bigode que viu reflectido no pára-brisa já ele o conhecia de um certo lugar. Um lugar onde nunca estivera.

Sentia-se cair, sem qualquer ponto de apoio, volteando num negrume total sem fundo nem cimo ou qualquer outra orientação. Quase enlouqueceu no primeiro segundo.
A primeira coisa que o tirou do nada foi um som compassado, grave, que não identificava. Teria morrido? Aquele fabricante de drogas baratas tê-lo-ia assassinado? Talvez uma bomba no carro!
O som quebrou-lhe o raciocínio e ocupou-lhe a existência. Sentiu-se mexer; o colchão rangeu e as trevas desvaneceram-se quando se abriram os olhos daquele desconhecido gordo. Insuportavelmente gordo...

Tentei desligar com a mão direita um despertador inexistente e obtive como resposta um coro de buzinas. Estava novamente no automóvel que me tinham cedido para a minha missão e o sinal caíra novamente para o verde. Ele seguia algumas dezenas de metros lá à frente, no seu qualquer-coisa de luxo. Estaria a ficar louco?

Lá estava ele atrás, no carro vulgar, vigiando-me os movimentos. Não fora uma alucinação o que sentira, embora não fizesse qualquer ideia sobre a natureza daquele estranho fenómeno de... transferência? Sim, era isso! Transferência era o termo mais aproximado para designar o que me acontecera. Agora poderia proteger-me, embora não soubesse com que intenção ele me seguia. Neste mundo tudo me parece possível, mesmo o que é improvável.

Para Wilbur Teeling fora um despertar tormentoso, com aquele sonho que tão bom fora da primeira vez e tão estranho se tornara na sua segunda ocorrência.
Levantou com dificuldade os seus muitos quilos da cama e foi lavar-se. Com a folga do empregado teria de ser ele a tomar conta da sua loja de armas antigas. A melhor loja da região, pensou com orgulho.
Miss Jeavers já tinha o seu pequeno almoço na mesa quando ele desceu. Era incapaz de se dominar no que respeitava à comida. A fome reaparecia-lhe sempre, como um guerrilheiro emboscado, nos instantes em que ele se sentia mais indefeso. Já tentara tudo, até capitular perante a sua gula.
A sua casa era uma imitação perfeita de uma estalagem do século XVII, excepto nos interiores, claro. A loja era lá, também, o que lhe resolvera um problema delicado de locomoção. A única ligação aos seus aposentos particulares era uma porta, suficientemente larga para ele passar mas demasiado estreita para que os abelhudos se intrometessem na sua vida privada.
Abriu um armário antigo, envidraçado, e tirou a última peça que adquirira: uma réplica formidável, perfeitamente funcional, de uma Luger alemã do ano de 1943! Esse modelo fora utilizado pelo exército desse país numa longínqua guerra, mais ou menos por essa altura. Se tudo corresse bem, daí a uns dias passaria para as mãos do digníssimo Administrador do Sistema Computacional de Justiça e Imposições Morais. Walter Scherer era mais conhecido por ASCJIM, as iniciais do cargo que desempenhava.
Sim, se tudo corresse como esperava, Walter Scherer pagar-lhe-ia muito bem por aquela pistola.

Era a terceira vez que espreitava pelas janelas do meu escritório. De todas as vezes que olhei vi o carro cinzento estacionado do outro lado da rua.
Por mais que tentasse, apenas possibilidades absurdas me vinham à cabeça: Phoebe queria divorciar-se de mim e para isso contratara um detective para me vigiar e apanhar em falta (esta hipótese logo a coloquei de parte, Phoebe não era dessas e o ciúme não estava na moda); o homem era um polícia que tentava apanhar-me com alguma coisa menos clara na minha vida ou nos meus negócios (o negócio mais escuro da minha vida resumia-se à fabricação e comercialização dumas pílulas inofensivas, receitadas pelos médicos a hipocondríacos militantes e que eram negras como uma noite sem lua); o tipo era um assassino contratado pela concorrência para me eliminar (será que os métodos dos gangsters do século XX estavam na moda?). Esta era a que mais plausível me parecia, um concorrente invejoso tentando um atalho para o sucesso.
Olhei uma quarta vez: ele continuava lá, não lhe via o bigode, mas a sua silhueta era visível no interior do automóvel cinzento.
- Sarah, avise a minha esposa de que não vou almoçar a casa.


Tinha tudo preparado: a loja reluzia e todas as armas haviam sido limpas com esmero. Ele já não devia demorar.
Aquela visita era o culminar da sua carreira e o ponto mais alto no prestígio da sua loja.
- Miss Jeavers, você só vem à loja se for chamada. Martin, quero-o impecável! Você é que abrirá a porta. Ainda sabe o que deve fazer ou já se esqueceu de tudo?
Maldita peruca que teimava em descair para o lado.

Nos últimos dias, apesar da ansiedade que me provocava a sombra no carro cinzento, não tivera mais nenhuma experiência bizarra. Aquela estranha transferência não voltara a suceder, mas o estranho que me vigiava colocara-me os nervos em franja. Tinha de fazer qualquer coisa ou ficaria louco de tanto olhar por cima do ombro.
Escolhi o início da tarde para agir. Uma estranha ansiedade apoderou-se de mim e tornou tudo urgente. Saí do escritório com uma desculpa qualquer e dirigi-me no meu automóvel para uma estrada que sabia quase deserta. A sombra cinzenta seguia-me. Seria a última vez.

O que irá fazer este louco para uma estrada nas montanhas a estas horas? Que assunto poderá ter aí um fabricante de pílulas sortidas, que ganha a vida utilizando as fraquezas dos outros?
O maldito conduzia depressa! Teria de esforçar ao máximo o meu automóvel para não o perder.
Foi depois de uma curva cega que ele apareceu próximo demais. Foi inútil tentar travar, o carro dele forçou-me a ir para a valeta e a imobilizar-me. Fiquei tonto com o choque e não me mexi com a celeridade que devia.

Às 15:30 em ponto, Walter Scherer apareceu na minha loja. Deixou os guarda-costas lá fora e entrou descontraído, cumprimentando-me cordialmente.
- Como está, Mister Teeling?
- Sempre bem, Mister Scherer. Podemos ir direitos ao assunto que o traz aqui?
Ele acedeu com um ligeiro movimento da cabeça.
Walter Scherer era um homem prático, que não ligava a roupas ou a carros ou a qualquer moda. Tinha apenas uma paixão, as réplicas de armas antigas. Ainda bem.
Tirei a arma do estojo e exibi-lha.
- Está carregada?
- Sim, Mister Scherer. É um perigo relativo, mas todas as armas expostas estão carregadas e completamente funcionais. As balas são reais, também.
Ele ia comprá-la, via-lhe nos olhos o interesse! Eu não podia desejar melhor publicidade para a minha loja.